segunda-feira, 22 de março de 2010

Os herdeiros da terra

Acabo de ler Um certo verão na Sicília, de Marlene de Blasi, com tradução de Paulo Afonso (como são importantes os tradutores para o sucesso de uma obra), editado, em 2009, pela Objetiva.
Trata-se de um relato sobre o amor e uma comunidade nas montanhas sicilianas, que, ainda no século XXI, mantém tradições muito antigas.
A leitura desse livro lembrou-me a comunidade de Furnas dos Dionísios, ao pé da Serra de Maracaju, no município de Jaraguari, a 45 km de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul.
Foi em 1996, quando, a convite de Maria Gessy (excelente roteirista), então trabalhando da TV Educativa do Mato Grosso do Sul, ministrei um curso de roteiros para TV. O trabalho final dos alunos foi a reportagem Herdeiros da terra, sobre aquela comunidade. Foi ao ar na própria emissora.
Como professora da turma, acompanhei os alunos até Furnas dos Dionísios, fundada, segundo alguns registros, em 1901 e, segundo outros, em 1890, por Dionísio Antonio Vieira. Tem 900 hectares e abrigava, em 1996, 250 descendentes de seu fundador. Atualmente, vivem ali 92 famílias. Posto de saúde, energia elétrica e telefone só chegaram lá em 1991. O ensino básico passou a ser regular em 1983. É com orgulho que a população comemora o fim do analfabetismo em Furnas dos Dionísios.
O neto de Dionísio, Sebastião Abadio Martins, contou que seu avô, que dava muito duro em Minas Gerais, saiu de lá com sua família e se instalou na região cheia de morros, com terra fértil e água em abundância. A viagem, segundo relatou Sebastião, durou dois meses e foi feita em um burrinho, “animal pequeno, mas muito forte”, disse ele. Não se sabe ao certo com que idade Dionísio chegou nem com que idade morreu.
Com os herdeiros da terra, surgiram várias comunidades, como a dos Abadios e São Benedito. Todas são formadas, predominantemente, por negros. Muitos consideram os herdeiros de Dionísio uma comunidade quilombola. Mas, durante nossa visita, os próprios herdeiros nos disseram que não são quilombolas porque Dionísio não veio fugido e porque a escravidão já havia sido abolida quando o velho patriarca deixou Minas Gerais.
Por várias décadas, a comunidade permaneceu isolada, por ser uma área de difícil acesso. E foi o isolamento que a ajudou a preservar valores sociais e culturais.
Em Furnas dos Dionisios, a união faz a força. O sustento vem do cultivo da terra (mandioca, cana-de-açúcar e derivados) e da criação de animais. O excedente é vendido nos municípios vizinhos por meio de uma associação de pequenos produtores locais. Há também uma horta comunitária.
Homens, mulheres e crianças também se unem para organizar seu lazer, muito fiel, ainda, a antigas tradições, como a dança da catira, a prática de rezas e a realização de quermesses. Durante anos, predominou a religião católica, com missa, batizado, casamento, primeira comunhão e procissão. Nos anos de 1990, grupos de evangélicos foram chegando. Não há rivalidade entre eles e sim, respeito aos dogmas e às doutrinas de cada religião.
Quando chegamos, era tempo de festas juninas. Ana Batista Silva, a matriarca do local, muito hospitaleira, também neta de Antonio Dionísio (faleceu em janeiro de 2010 aos 101 anos de idade), nos contou, na época, que as festas juninas são tradição antiga, especialmente a de Santo Antônio, padroeiro do local. A devoção ao santo foi trazida por Dionísio e foi aumentando depois que uma roça de arroz foi invadida por gafanhotos. Sebastião conta que seu pai vendo aquilo, gritou: “Oh, meu Santo Antônio, tira esses bichos da minha roça”. A bicharada, segundo Sebastião, levantou vôo e, como que por um encanto, sumiu.
O espírito de cooperação também se manifesta no preparo do salão de festa e das comidas para as comemorações de Santo Antônio. As mulheres e as meninas se reúnem ao redor do fogão de lenha. Cantam, conversam, enquanto enchem o tacho de arroz com carne-seca, frango, porco milho e mandioca. No fogão de barro, galinhas recheadas e leitões – tudo bem assado – dão água na boca.
Uma procissão segue em cantoria até a igreja em que o padre reza a missa. Seu ponto alto é o ofertório afro com as crianças levando frutas, flores e grãos para o altar. É hora de acender a fogueira e dar vivas a Santo Antonio.
É fim de festa. Furna dos Dionísios vai dormir feliz.

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