terça-feira, 23 de março de 2010

Páscoa

Faltam poucos dias para a celebração da páscoa e, de repente, me vem à memória o dia 6 de abril de 1998. Eu trabalhava na Multirio como repórter, roteirista e editora do programa Cidade e Educação. Em pauta, Páscoa: símbolo da renovação. No estúdio, a apresentadora Vera Barroso, sempre muito competente e charmosa, tinha como convidados o professor Francisco José Silva Gomes, doutor em História Medieval e da Igreja, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Dra. Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora de teologia da PUC do Rio de Janeiro e o rabino Nilton Bonder, da sinagoga da Barra da Tijuca, também no Rio de Janeiro.
Mais do que um programa de televisão, aquele bate-papo diante das câmeras revelou-se uma aula de cultura religiosa ou um encontro de religiões.
Certamente, em meio à correria dos consumidores, preocupados em comprar ovos e coelhinhos de chocolate para familiares e amigos, poucos se lembrariam do verdadeiro significado da páscoa. Assistindo àquele programa, quanta informação os telespectadores estavam recebendo a respeito de culturas diferentes e, no entanto, tão próximas, uma – a cristã – sendo herdeira da outra – a judaica. Naquele programa, talvez, muitas pessoas tenham sido lembradas de que
tanto para os cristãos quanto para os judeus, páscoa significa renascimento.
No cristianismo, o renascimento se dá com a ressurreição de Cristo, significando o novo, a vida e a libertação.
No judaismo, a páscoa comemora uma libertação em particular: a saída do povo judeu do Egito, atravessando o Mar Vermelho e deixando para trás 210 anos de escravidão. Até hoje, na cultura judaica, essa libertação é comemorada com o pessach, que significa passagem.
Para os cristão, a páscoa também celebra uma passagem: a de Cristo, pela morte, atingindo a vida que nunca morre.
A páscoa judaica e a páscoa cristã se realizam em datas próximas. Algumas vezes, são até coincidentes e a razão é simples: a última ceia de Jesus Cristo com os apóstolos, na quinta-feira, foi exatamente a ceia em comemoração ao pessach.
Tanto no judaismo, quanto no cristianismo, a páscoa é uma festa móvel. A páscoa judaica é comemorada durante oito dias e ocorre sempre na primeira noite de lua cheia da primavera no hemisfério norte.
Já os cristãos comemoram a páscoa no primeiro domingo após a primeira noite de lua cheia da primavera no hemisfério norte.
Enquanto o pessach faz parte da cultura judaica há 3.412 anos, a data que comemora a páscoa cristã foi fixada durante o Concílio de Nicéa, no ano 325 d.C., no reinado do imperador romano Constantino I, o primeiro a aderir ao cristianismo.
A páscoa cristã também incorporou símbolos de uma festa pagã comemorada na Europa: o festival de Ostera, em comemoração à passagem do inverno para a primavera, na esperança de boa colheita depois do rigoroso inverno europeu que dificultava a produção de alimentos.
Ostera, em alemão arcaico (Ostern em alemão atual) é a deusa da primavera dos anglo-saxãos(Easter, em inglês). Seu nome quer dizer Páscoa. Ela é representada segurando um ovo na mão direita e observando um coelho, símbolo da fertilidade, pulando ao seu redor. Ostera e o ovo que carrega são símbolos da chegada de uma nova vida, da renovação periódica da natureza e, por isso mesmo, também indicam potência, fertilidade e geração. Durante os festejos de Ostera, os ovos eram pintados com símbolos mágicos, enterrados ou lançados ao fogo como oferta aos deuses. É o ovo cósmico da vida, a fertilidade da mãe Terra.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Os herdeiros da terra

Acabo de ler Um certo verão na Sicília, de Marlene de Blasi, com tradução de Paulo Afonso (como são importantes os tradutores para o sucesso de uma obra), editado, em 2009, pela Objetiva.
Trata-se de um relato sobre o amor e uma comunidade nas montanhas sicilianas, que, ainda no século XXI, mantém tradições muito antigas.
A leitura desse livro lembrou-me a comunidade de Furnas dos Dionísios, ao pé da Serra de Maracaju, no município de Jaraguari, a 45 km de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul.
Foi em 1996, quando, a convite de Maria Gessy (excelente roteirista), então trabalhando da TV Educativa do Mato Grosso do Sul, ministrei um curso de roteiros para TV. O trabalho final dos alunos foi a reportagem Herdeiros da terra, sobre aquela comunidade. Foi ao ar na própria emissora.
Como professora da turma, acompanhei os alunos até Furnas dos Dionísios, fundada, segundo alguns registros, em 1901 e, segundo outros, em 1890, por Dionísio Antonio Vieira. Tem 900 hectares e abrigava, em 1996, 250 descendentes de seu fundador. Atualmente, vivem ali 92 famílias. Posto de saúde, energia elétrica e telefone só chegaram lá em 1991. O ensino básico passou a ser regular em 1983. É com orgulho que a população comemora o fim do analfabetismo em Furnas dos Dionísios.
O neto de Dionísio, Sebastião Abadio Martins, contou que seu avô, que dava muito duro em Minas Gerais, saiu de lá com sua família e se instalou na região cheia de morros, com terra fértil e água em abundância. A viagem, segundo relatou Sebastião, durou dois meses e foi feita em um burrinho, “animal pequeno, mas muito forte”, disse ele. Não se sabe ao certo com que idade Dionísio chegou nem com que idade morreu.
Com os herdeiros da terra, surgiram várias comunidades, como a dos Abadios e São Benedito. Todas são formadas, predominantemente, por negros. Muitos consideram os herdeiros de Dionísio uma comunidade quilombola. Mas, durante nossa visita, os próprios herdeiros nos disseram que não são quilombolas porque Dionísio não veio fugido e porque a escravidão já havia sido abolida quando o velho patriarca deixou Minas Gerais.
Por várias décadas, a comunidade permaneceu isolada, por ser uma área de difícil acesso. E foi o isolamento que a ajudou a preservar valores sociais e culturais.
Em Furnas dos Dionisios, a união faz a força. O sustento vem do cultivo da terra (mandioca, cana-de-açúcar e derivados) e da criação de animais. O excedente é vendido nos municípios vizinhos por meio de uma associação de pequenos produtores locais. Há também uma horta comunitária.
Homens, mulheres e crianças também se unem para organizar seu lazer, muito fiel, ainda, a antigas tradições, como a dança da catira, a prática de rezas e a realização de quermesses. Durante anos, predominou a religião católica, com missa, batizado, casamento, primeira comunhão e procissão. Nos anos de 1990, grupos de evangélicos foram chegando. Não há rivalidade entre eles e sim, respeito aos dogmas e às doutrinas de cada religião.
Quando chegamos, era tempo de festas juninas. Ana Batista Silva, a matriarca do local, muito hospitaleira, também neta de Antonio Dionísio (faleceu em janeiro de 2010 aos 101 anos de idade), nos contou, na época, que as festas juninas são tradição antiga, especialmente a de Santo Antônio, padroeiro do local. A devoção ao santo foi trazida por Dionísio e foi aumentando depois que uma roça de arroz foi invadida por gafanhotos. Sebastião conta que seu pai vendo aquilo, gritou: “Oh, meu Santo Antônio, tira esses bichos da minha roça”. A bicharada, segundo Sebastião, levantou vôo e, como que por um encanto, sumiu.
O espírito de cooperação também se manifesta no preparo do salão de festa e das comidas para as comemorações de Santo Antônio. As mulheres e as meninas se reúnem ao redor do fogão de lenha. Cantam, conversam, enquanto enchem o tacho de arroz com carne-seca, frango, porco milho e mandioca. No fogão de barro, galinhas recheadas e leitões – tudo bem assado – dão água na boca.
Uma procissão segue em cantoria até a igreja em que o padre reza a missa. Seu ponto alto é o ofertório afro com as crianças levando frutas, flores e grãos para o altar. É hora de acender a fogueira e dar vivas a Santo Antonio.
É fim de festa. Furna dos Dionísios vai dormir feliz.

terça-feira, 16 de março de 2010

Primeiras palavras

Certa vez ouvi do jornalista Juvenal Portela a seguinte frase: “todo repórter é jornalista, mas nem todo jornalista é repórter”. Desde então, passei a usá-la como se fosse minha, tanto nas redações de rádio e televisão em que trabalhei como repórter, redatora e editora, quanto nas aulas que ministrei durante 30 anos no curso de Jornalismo, do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Afinal, o (a) repórter acompanha o pulsar dos acontecimentos, no momento da ação. É “testemunha ocular da história”, como dizia o slogan do velho Repórter Esso. É ele (a) quem vivencia e descreve o cotidiano dos que são notícia, não importa a que categoria social seus personagens pertencem. É ele (a), que na neutralidade que lhe é exigida, expõe sua parcialidade na seleção das palavras escritas, na ênfase das frases ditas, na expressão de seu olhar.
Foi como repórter que conheci o Brasil de norte a sul, especialmente depois que passei a atuar no jornalismo científico. Em minhas andanças, constatei que o Brasil não se resume ao eixo Rio-São Paulo, com variantes para Belo Horizonte e Brasília. Conheci diferentes brasis e brasileiros que ainda hoje me fazem acreditar que é possível viver a utopia de uma sociedade melhor. Eles pouco ocupam os espaços dos jornais, das televisões e dos noticiários radiofônicos. São pessoas que fogem a padrões sensacionalistas na maneira de viver e de se comportar. Acreditam que a dignidade do ser humano está no trabalho honesto, seja ele simples e rudimentar, ou complexo e sofisticado.
É especialmente sobre esses brasileiros que quero escrever neste blog, embora não exclusivamente. Há espaço para outros assuntos que me despertaram e ainda despertam meu interesse.
Optei por um blog porque nele posso escrever o tanto que quiser, sem me preocupar com um determinado número de páginas. Hoje escrevo algumas linhas, amanhã, outras tantas e por aí vai. Também não preciso começar com "era uma vez" nem seguir uma cronologia. Os escritos virão na medida das lembranças que guardo e de anotações que fiz e que estão espalhadas em pastas desorganizadas.
Espero ter alguns leitores e críticos. Que dentre eles estejam futuros jornalistas que hoje estão nas salas de aula das muitas faculdades espalhadas por aí, embora o diploma não seja mais exigência para o exercício da profissão. Mas voltará a ser em breve, espero. Espero, também, que um dia esses estudantes possam viver a instigante profissão de repórter que me levou a andar por aí.