quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Minha experiência na Antártica





Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 1982. O navio oceanográfico brasileiro Barão de Teffé partiu do Arsenal da Marinha rumo à Antártica. No cais, uma multidão se despedia da tripulação e dos cientistas que estavam a bordo. Beijos, abraços, lágrimas de mulheres, mães, filhos, e promessas de namorados para um final feliz após o retorno. Dentre toda aquela gente estávamos nós, da então TV Educativa do Rio de Janeiro. Eu, a repórter, entrevistei algumas pessoas e descrevi o navio que havia sido adquirido da Dinamarca e incorporado à Marinha Brasileira naquele mesmo ano de 1982. Jornalistas dos principais jornais, rádios e emissoras de TV também estavam lá para registrar o início da Operação Antártica I. Dentro do Barão de Teffé estava Hermano Henning, na época, repórter da TV Globo. Bom repórter, por sinal. Ele e sua equipe iriam documentar as atividades brasileiras na região. Em função da importância daquele momento, lá estava também o então Ministro da Marinha, Maximiano Eduardo da Silva Fonseca. Fiz com ele uma longa entrevista. Quando nossa câmera e microfone foram desligados, aproveitei para reclamar: por que a TV Educativa também não estava lá dentro para acompanhar aquela viagem? Afinal, éramos uma emissora pública. O ministro respondeu, com certa ironia, que não havia lugar a bordo para mais de uma equipe e que ele mesmo gostaria de estar lá também. Prossegui com a minha crítica argumentando que, nesse caso, a TV Educativa deveria ser a emissora a registrar aquela operação e não uma emissora comercial. Usei todos os argumentos possíveis para defender meu ponto de vista em defesa da televisão pública. O navio partiu, o ministro foi embora, nós fomos para emissora fazer a matéria e tempos depois, Hermano Henning trouxe de volta uma reportagem muito boa. Meu problema não era com o Hermano Henning, nem com a TV Globo, mas com o governo brasileiro que privilegiava uma emissora comercial em detrimento da televisão pública, mantida com recursos públicos. Morreram ali minhas esperanças de um dia chegar à Antártica.
Na Operação Antártica II, o então diretor de jornalismo da TVE, Hamilton Alcântara, me chamou dizendo que a emissora havia sido convidada para cobrir a participação brasileira na Antártica e que eu havia sido designada para aquele trabalho. Infelizmente, na época, razões particulares não me permitiram ir. Assim, para lá foi a minha colega, amiga e comadre, Irene Cristina, que fez um belo documentário, apesar de uma série de dificuldades que encontrou por falta de organização dos responsáveis pela operação em terra. Pois bem, tirei de vez da minha cabeça a ideia de um dia conhecer a Antártica.
Mas lá estava eu em fevereiro de 1985, junto com o cinegrafista Toni Laport, registrando para a TV Educativa o trabalho de pesquisadores brasileiros na Estação Comandante Ferraz, que fica na Ilha Rei George, no abrigo "Engenheiro Wiltgen", situado na Ilha Elefante e no navio oceanográfico Barão de Teffé. Na verdade, eu fui cobrir o que eles chamavam (não sei se ainda chamam) de terceira pernada, ou seja, a etapa final daquela terceira operação.
Embarcamos, no Rio, num Hércules C-130 da FAB que dava apoio ao Programa Antártico Brasileiro, levando e trazendo cientistas e equipamentos para o navio Barão de Teffé e para a Estação Comandante Ferraz. Embora fosse um avião de carga, o Hércules cumpriu muito bem sua missão de transportar gente. Não houve quem não gostasse da experiência. Malas, contêineres, bolsas, sacolas, dragas, caixas com equipamentos dos cientistas, tudo estava num só compartimento, junto com os passageiros e tripulantes. Saímos do Rio no dia 21 de fevereiro. Pernoitamos em Pelotas e, de lá, seguimos para Punta Arenas, no Chile. No dia 23, às 7 horas da manhã, decolamos para a Antártica. Ficamos sabendo que a temperatura era de um grau negativo, com sensibilidade térmica de menos 10 graus, por causa do vento com intensidade de 25 nós. Nevava, mas havia teto e visibilidade. Pelo menos, era isso que nos informavam da torre da base chilena de Marsh, usada pelos aviões brasileiros. Quando sobrevoamos a passagem de Drake, tudo indicava que o pouso poderia ser realizado. Mas, a certa altura, o comandante do avião foi informado de que havia muita neve na pista e que a camada de gelo teria de ser removida. Assim, ficamos sobrevoando a área durante mais de meia hora. Depois da limpeza da pista, recebemos ordens para pousar. Cruzada a névoa intensa, voamos num céu azul, daqueles de brigadeiro. Lá embaixo, a ilha Rei George nos aguardava. Ela fica a leste da península Keller, na baía do Almirantado. É a ilha mais extensa do arquipélago das Shetlands do Sul. Tem 44 milhas de comprimento e 15 de largura. Ali, o Brasil construiu sua estação, próximo a um refúgio inglês, instalado em 1947 e visitado, pela última vez, pelos ingleses em 1983. Toni e eu acompanhamos tudo da cabine de comando do avião. Ele, naturalmente, não parava de gravar. Eu, sentada sobre uma espécie de maca, situada no alto, logo na entrada da cabine, tinha uma visão perfeita. Quanto mais nos aproximávamos, mais nos impressionavam as primeiras colinas de gelo. Sem sombra de dúvida, o pouso no continente antártico foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida de repórter.
Em Marsh, a missão do Hércules estava cumprida. Fiz algumas entrevistas e, como todos ali, quando Tony e eu vimos o primeiro pinguim, corremos para registrá-lo com nossa câmera. As fitas que gravamos foram levadas para a TV-E, no Rio, pela tripulação do avião. Nosso voo e nosso pinguim seriam vistos no Brasil no dia 26 de fevereiro.
Da base chilena, fomos a Comandante Ferraz de helicóptero. Viver em Comandante Ferraz, ou em outras estações na Antártica, é viver em situação de quase confinamento. Isolados do mundo, sem notícias do Brasil, com dias da semana que não se diferenciam uns dos outros, os pesquisadores desenvolvem hábitos de convivência, talvez nunca imaginados, como os de dividir as tarefas domésticas. Ajudam a arrumar a casa, formada por um conjunto de contêineres; lavam louça, descascam verduras e legumes e ajudam a preparar carnes e frangos. Volta e meia, à tardinha, depois de um dia de trabalho, formava-se uma roda de samba improvisada, com violão, cavaquinho e maracá.
Do lado de fora, montanhas de vários tons de azul e branco nos impressionavam. São as cores do gelo antártico. Dentro d’água, grandes blocos de gelo flutuam para onde as correntes e os ventos os levam até derreterem em águas mais quentes, sabe-se lá onde. Na Antártica manda a lei da natureza e, por isso, tive a impressão de que o homem aceita mais facilmente a ideia de que Deus existe. É por isso também que em Ferraz e no próprio navio Barão de Teffé, as missas do capelão eram muito frequentadas. Por intermédio delas, fomos lembrados que era tempo de quaresma. Na Antártica, perdemos a noção de calendário.
Deixamos Comandante Ferraz e, já embarcados no Barão de Teffé (éramos cinco mulheres e 120 homens), prosseguimos viagem percorrendo as ilhas do arquipélago das Sheatlands do Sul, como Gibbs, Aspland, Eadie e Elefante. Na ilha Elefante são raros os dias de sol, mesmo no verão. Lá, encontramos o chamado pinguim antártico e o pingüim papua, que tem bico laranja. Nas pinguineiras dessa ilha, os filhotes estavam começando a perder suas penas. Era prenúncio de inverno. Logo, eles estariam emigrando. Um dado curioso é que os pinguins são muito fedorentos. Acho que é por causa da gordura que eles têm, sei lá. Só sei que uma das pinguineiras que visitei, com milhares de pinguins, chama-se Stinker Point.
Impressionante foi ver a ilha de Decepción, com seu vulcão ainda em atividade. Ela também faz parte das Shetlands do Sul. Num dos pontos de sua enseada, ocorrem as chamadas fumarolas. Lá, a temperatura da água chega a atingir mais de 80 graus. São gazes do interior superaquecido da crosta, formando contínuos vapores em contato com o meio exterior.
Na Antártica, o Barão de Teffé teve de enfrentar a fúria do mar, com ventos de 40 nós, ou seja, 74,6 km. Vagalhões moderados se formavam e as cristas das ondas com 4 metros se quebravam em borrifos. A espuma espalhava-se em faixas bem definidas na mesma direção dos ventos. Nessas condições, recomenda-se buscar abrigo.
Na Antártica eu vivi a experiência de conhecer um mundo sem fronteiras. Perto da base brasileira, ficavam as do Chile, da Polônia, da então Alemanha Oriental e da antiga União Soviética. Visitamos todas. Em cada uma, as portas sempre estavam abertas aos vizinhos, fosse qual fosse a coloração ideológica de seus governos (na época, o mundo ainda era dividido em dois blocos: o socialista e o capitalista). Em Artowsky, a base polonesa, ornitólogos brasileiros realizavam com seus colegas poloneses, o anilhamento de aves para observar suas rotas migratórias. Na entrada da base, as bandeiras polonesa e brasileira simbolizavam a cooperação entre os dois países. Terminado o trabalho dos brasileiros, chegou a hora da despedida. Os abraços calorosos revelavam a amizade que uniu aquela gente de mundos tão diferentes. Vi homens de quase dois metros de altura com lágrimas nos olhos no momento de dizer adeus aos brasileiros. Naquela mesma base, assisti a um concerto de música clássica em vídeo. Antes, fomos convidados a jantar. Como se tratava de um momento solene, os poloneses vestiam terno e gravata. Houve aplausos depois da exibição do concerto. Nós também aplaudimos, é claro. Talvez eles fizessem isso para lembrar que é preciso manter o ritual.
Na então base soviética, o comandante exibia em seu escritório um retrato de Pelé. Batemos um longo papo e, durante a conversa, ele nos ofereceu biscoitos soviéticos regados a guaraná do Brasil. O mesmo ocorreu na estação da então Alemanha Oriental, que era um braço da base soviética e na qual trabalhavam apenas seis pesquisadores. Eram biólogos e ecologistas.
Na Antártica, que eu conheci, era assim: nenhuma porta era trancada, mesmo quando uma equipe regressava ao seu país. Nenhum alimento era levado de volta na bagagem. Não sei se é apenas um costume ou regra estabelecida, mas a razão é simples: suponha que alguém se perca em seu caminho e precise de abrigo e comida. Uma base fechada, mas não trancada, pode ser o refúgio desse alguém.
No navio Barão de Teffé, vivenciei coisas interessantes. Os civis, inclusive nós, tinham de participar das chamadas paradas. De parada, não tinham nada. Eram as reuniões matinais que se realizavam bem cedo e nas quais os superiores passavam para os seus subordinados a rotina do dia.
Não me lembro bem com que frequência eram exibidos filmes. Um dia eu pedi ao imediato que programasse o filme Flashdance que já tinha sido exibido, mas antes da nossa chegada. O imediato disse que não seria possível porque para aquele dia estava programado um outro e que o Flash dance já fora visto pela tripulação. (Um parênteses: os pesquisadores que estavam no Barão de Teffé também participavam da terceira pernada. Quando eles embarcaram, os que os antecederam desembarcaram). Na verdade, foram as cinco mulheres que pleitearam a mudança do programa. Tínhamos o aval dos pesquisadores e de alguns oficiais. Mas o imediato não nos atendeu. Coisas de militares da época.
Quando fui fazer uma matéria na ilha Elefante, o comandante do navio não queria que eu fosse. Ele tinha medo de eu ter de ficar por lá, caso o tempo ficasse ruim. Como lá tinha um abrigo, eu disse a ele que estaria protegida. O argumento dele para eu não ir foi o seguinte: eu era uma mulher casada e não ficaria bem se eu tivesse de ficar num abrigo com meia dúzia de homens. Eu disse a ele que estava lá para trabalhar e não para fazer turismo. Fui para a ilha Elefante, não houve mudança de tempo e voltei para o navio ao anoitecer.
Trinta dias depois todos voltaram para casa. Naquela ocasião, os brasileiros ainda não passavam o inverno na base brasileira. Fomos à base chilena, dessa vez de barco, para lá embarcar num outro Hércules que nos levaria de volta ao Brasil. Quando lá chegamos, ficamos sabendo que o Hércules chegaria com atraso e que teríamos de pernoitar na base chilena. Foi uma sensação terrível. Estávamos no “fim do mundo” sem condições de voltar. No dia seguinte, quando fomos informados da chegada do avião, foi aquela alegria. Tony e eu preparamos o equipamento para gravar o pouso do avião. Assim que o avistamos fomos tomados de uma emoção indescritível; os olhos de alguns, inclusive os meus, se encheram de lágrimas e minha voz ficou embargada. Refeita da emoção, embarcamos. Dessa viagem resultou a reportagem Brasileiros no mundo branco exibida pela rede da TVE e pela TV Cultura de São Paulo.
Bem que eu gostaria de voltar à Antártica para poder comparar o ontem com o hoje. Quem sabe, um dia isso acontece.