sábado, 22 de outubro de 2011

O esforço de uma professora para trazer de volta à escola alunos evadidos

No ano 2000, eu trabalhava na MultiRio, uma empresa de multimeios da Prefeitura do Rio de Janeiro, que produz programas educativos transmitidos, na época, pela TV Bandeirante e pelo Canal 03 da NET. Eu era editora jornalística, repórter e roteirista dos programas “Cidade e Educação” e “Orgulho Carioca”. Nos meus três anos de trabalho na empresa, percorri escolas públicas e nelas testemunhei o trabalho incansável de vários profissionais de educação: professores de educação física que fizeram da rua uma extensão da escola ao usá-la como pista de atletismo em horários fora da grade escolar ocupando, assim, o tempo das crianças com atividades que fazem bem ao corpo e à mente; professores de artes industriais que, junto com seus alunos, restauraram todo o mobiliário de sua escola, ensinando-os, não só um ofício, mas conscientizando-os para a importância da conservação; e professores de história que usaram as artes cênicas como um de seus instrumentos de ensino, fazendo com que seus alunos passassem a se interessar, com entusiasmo, pelo passado de seu país. Mas, uma professora, em especial, não me sai da cabeça. É Antonia Beriuca da Silva, que, na época, lecionava no Ciep Carlos Drumond de Andrade, uma das escolas em que foi implantado o programa “Aceleração de Aprendizagem”, cujo objetivo era levar, até a quinta série, alunos já alfabetizados, mas que tinham dois ou mais anos de defasagem. Aquela mulher, de aparência simples, ensinava pacientemente em sua sala de aula, sempre de portas abertas, porque não queria manter os alunos trancados, para que não se sentissem forçados a aprender. Restabelecer o fluxo escolar normal de jovens é um desafio e tanto. E, para a professora Antonia, o desafio era ainda maior, porque havia várias crianças que faltavam e se evadiam da escola. Algumas ela conseguiu trazer de volta, depois de tê-las procurado pelas ruas, em terrenos baldios, embaixo de pontes e viadutos. Eram jovens que foram rotulados durante muito tempo, taxados de incapazes, que desconheciam carinho. Quando os encontrava, a professora Antonia se aproximava e dizia:
“Venha..., eu posso lhe dar amor; talvez não o que você mereceria receber, mas eu posso lhe dar amor. Não estou trabalhando com você para transformá-lo em catedrático ou doutor. Quero trabalhar com você para que você seja alguém na vida que saiba vencer as dificuldades”.
A professora Antonia não conseguiu resgatar todos os evadidos. Mas, cada vez que um voltava à sala de aula, ela via seu esforço recompensado.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Maralto, de Luiz Carlos de Souza, é exemplo raro de jornalismo literário



Luiz Carlos de Souza é jornalista, escritor, poeta e músico. Na noite do dia 12de abril, na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), cercado de amigos, Luiz Carlos lançou a segunda edição do livro Maralto: relato de uma pesca perigosa, editado pela Booklink Publicações.
Muito mais do que um relato de uma pesca perigosa, Maralto é exemplo de um gênero – o livro-reportagem - que poucos jornalistas puderam e podem experimentar. Ele o fez ainda jovem, aos 27 anos de idade, numa época (nos anos de 1970) em que o jornalismo foi marcado pela ausência da reportagem. O que se lia nos jornais eram notícias e matérias transcritas quase que na íntegra dos press-releases oficiais. Nas escolas de comunicação, pregava-se a objetividade e neutralidade do jornalismo, e a fronteira entre jornalista e escritor era bem demarcada. Luiz Carlos transgrediu as regras. Observando os barcos de pesca ancorados na Praça Quinze, no Rio de Janeiro, durante suas idas e vindas à sucursal do Jornal do Brasil em Niterói, ousou acompanhar, do início ao fim, a bordo de uma traineira, o trabalho árduo dos pescadores de linha, expostos, durante dias infindáveis (de 17 de agosto a 11 de setembro de 1972), aos perigos do alto-mar em seus minúsculos caíques, a 400 milhas (740 km) da costa de Vitória, no Espírito Santo. Seu companheiro de trabalho, o fotógrafo Almir Veiga, também estava lá, “clicando” tudo em preto e branco. São dele as fotos que ilustram a capa e a contracapa do livro. O resultado é MARALTO, uma narrativa rica e detalhada que reflete o drama de uma categoria profissional presa a normas peculiares de relações de trabalho; não há lei que a protege.
Na neutralidade exigida do repórter, Luiz Carlos expôs sua parcialidade em cada palavra escrita sobre os temores, a solidão, os amores e desamores, a saudade e a coragem daqueles homens do mar. Revela a determinação e o interesse em tornar pública a luta diária dos trabalhadores do mar até hoje submetidos à exploração do homem pelo homem, embora todos estejam, ao fim do dia, no mesmo barco e exista uma camaradagem imensa entre todos, como escreveu o autor. E, Luiz Carlos não teve medo de expor suas próprias emoções ao testemunhar o pulsar dos acontecimentos na aventura diária vivida por homens que, do fundo do mar, tiram o sustento de suas famílias. Ele o fez com muita competência. Militante da mais instigante de todas as profissões – o jornalismo - no dizer da jornalista e escritora Cláudia Werneck, Luiz Carlos expôs o seu prazer de conhecer gente de seu país, e exercitou o que o professor Edvaldo Pereira Lima, doutor em Ciências da Comunicação e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, chama de Jornalismo Literário Avançado, “uma proposta diferenciada, que recupera a grande reportagem, lançando-a a novos patamares em busca de excelência no diálogo com o leitor”. Maralto, é um exemplo desse diálogo: o leitor tem a impressão de estar participando daquela viagem e vivenciando, ao lado de Luiz Carlos, a luta diária dos pescadores profissionais.
Tão logo retornou do mar, Luiz Carlos publicou uma série de quatro reportagens no Jornal do Brasil. Em 1976 MARALTO foi publicado. Mas o livro continua sendo atual. De lá para cá, nada mudou na pesca de linha. Apenas uma novidade: os caíques estão hoje equipados com rádios que se comunicam com o barco-mãe. Isso ajuda quando um pescador está perdido.
Que este livro seja lido também por estudantes de jornalismo. Além de aprenderem um pouco mais sobre a realidade brasileira, em Maralto eles terão um raro exemplo de livro-reportagem.

sábado, 9 de abril de 2011

O sapato apertado

O avião acabara de levantar vôo do Galeão, no Rio de Janeiro. Seu destino: Porto Alegre. Um dos passageiros, Luiz, não aguentava mais a dor nos pés. Tudo por causa de um par de sapatos novos. Aliás, sempre foi assim, há mais de quarenta anos. Cada sapato novo, uma nova dor. Por isso, não gostava de comprar sapatos. Para Luiz, nada melhor do que sapatos velhos já alargados de tanto andar.
Os sapatos que machucavam seus pés dentro daquele avião tinham sido comprados na tarde do dia anterior, depois de ter ido ao barbeiro. Queria se apresentar bem vestido e calçado, com cabelos cortados e barba feita na conferência que iria proferir durante um simpósio sobre o Estado Novo, no Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O avião posou no Aeroporto Salgado Filho na hora prevista. Como a conferência estava marcada para as 3 horas da tarde, Luiz pensou em aproveitar a manhã para colocar a conversa em dia com seu grande amigo Dilson, jornalista e historiador, e que também participaria do simpósio. Por isso, foi até o apartamento dele na Avenida Independência. Fazia tempo que os dois não se encontravam. Falavam muito por telefone. Eram ligações intermináveis, durante as quais assuntavam sobre política, futebol, literatura, cinema e amigos comuns.
No aeroporto, Luiz pegou um táxi. Os pés continuavam doendo. A essa altura seus calcanhares já estavam com bolhas. Do táxi até a entrada do prédio foi uma tortura andar. Não precisou esperar muito pelo elevador. Luiz saltou no 14o andar e tocou a campainha no apartamento 1403, Dílson não demorou a abrir a porta e, depois do abraço de boas-vindas, Luiz foi logo reclamando dos sapatos que apertavam.
− Se os sapatos apertam tanto, vamos comprar um novo par − sugeriu Dílson −, tentando solucionar rapidamente o problema do amigo.
E lá foram os dois a uma sapataria. Não tiveram de andar muito, embora Luiz estivesse se arrastando rua acima.
Na sapataria, escolheu um sapato preto, parecido com o que usava. O vendedor, depois de ouvir os lamentos do professor, perguntou que número calçava.
− Trinta e nove – disse o freguês machucado.
Minutos depois, o vendedor voltou com duas caixas; abaixou-se e ajudou Luiz a experimentar o sapato novo.
− Engraçado, esse também aperta – disse Luiz. Até meu pé se ajustar vai demorar de novo.
O vendedor, calmamente, abriu a outra caixa e dela tirou um novo sapato. Mais uma vez abaixou-se e ajudou Luiz a calçá-lo.
− E esse, professor, também aperta?
Luiz levantou da cadeira, deu alguns passos e espantado disse:.
− Gozado, é a primeira vez que calço um sapato novo que não dói.
− É porque o senhor não calça 39.
− Como não?
− O senhor calça 40.
− Mas meu pai sempre me disse que eu calçava 39.

domingo, 27 de março de 2011

Tiziana Bonazzola, uma saudade


Tiziana nos deixou. Aos 90 anos de idade, seu corpo disse não à vida. Um anjo a levou e agora ela é mais uma estrela na constelação de seres humanos que foram imprescindíveis. Tiziana Bonazzola era artista plástica. Adorava pintar paisagens e flores. E o fazia com maestria e muita sensibilidade. Aos cinco anos de idade, seu tio Gulio Cisari, pintor e gravador que vivia em Milão, deu-lhe uma caixa de aquarelas e ela começou a pintar o que a encantava de observar: rosas, fura-neves e outras flores do jardim de sua casa em Varese, na Itália, onde nasceu. A natureza era uma de suas preocupações e foi registrada no catálogo de sua última exposição no Museu Nacional de Belas Artes, em maio de 2008, no Rio de Janeiro: “Gostaria que minhas obras fizessem lembrar aos jovens a importância de observar a natureza e vibrar com ela. Uma rosa desabrocha, se abre e depois cai com suas pétalas, mas nos doa sua beleza”, escreveu. Tal como as rosas, Tiziana era bela, por dentro e por fora. Generosa, acolhedora, tolerante, pacificadora, suave e afetuosa. Às vezes parecia frágil, mas era mulher de fibra. Em sua juventude enquanto estudava arte, veio a guerra e, com ela, a ocupação de seu país, a Itália. Movida pelo desejo à liberdade, como todos os seus compatriotas, Tiziana engajou-se na resistência levando, diariamente, em sua bicicleta, materiais que o seu irmão ativista e líder partegian, mandava para os seus companheiros. Na cerimônia de cremação do corpo de Tiziana, no Rio de Janeiro, foi lido um e-mail que um velho companheiro da resistência enviou à família (tão logo soube de seu falecimento) relembrando os feitos da então adolescente idealista. Tiziana se foi. Seu ideal por um mundo melhor permanece, assim como permanecem a sua obra e a imagem de mulher guerreira, esposa dedicada, mãe exemplar, avó “coruja” e amiga na tristeza e na alegria. Tiziana se foi. Fica a saudade e a lembrança de uma das pessoas mais sensíveis que já conheci. Ter convivido com Tiziana, por longos anos, é algo que carrego como um troféu.
Foto: Isis Braga

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Segredos da propaganda anticomunista



A noite de 09 de fevereiro de 2011, na livraria Argumento, no Leblon (RJ) foi uma noite de encontro de amigos e de amigos de amigos de Geraldo Cantarino, um amigo de longa data, daqueles que a gente guarda no coração por toda uma vida. Lá estavam ex-professoras do tempo da escola primária (para mim, as pessoas mais importantes na formação de nosso filhos), amigos de infância, do tempo de faculdade e das várias fases da sua vida profissional. Geraldo estava lançando seu terceiro livro: Segredos da propaganda anticomunista, editado pela Mauad. Veio de Londres, onde trabalha e mora com sua família, especialmente para esse evento, sempre importante para um autor.
Jornalista, escritor e fotógrafo, Geraldo Cantarino escreve com clareza e objetividade, o que, aliás, se espera de todo jornalista, e com o mesmo estilo que marcam seus outros dois livros: A revolução para inglês ver e Uma ilha chamada Brasil (meu favorito, até então).
Segredos da propaganda anticomunista exibe, pela primeira vez, documentos diplomáticos britânicos sobre as atividades de propaganda anticomunista realizadas no Brasil pelo IRD (Information Research Department ou Departamento de Pesquisa de Informações). Estabelecido em 1948 e fechado em 1977, o IRD foi uma unidade secreta do governo do Reino Unido com a missão de combater a propaganda soviética e a influência do comunismo, principalmente, em países do Terceiro Mundo, durante a Guerra Fria.
Geraldo pesquisou durante três anos os arquivos a respeito, no The National Archives, que corresponde ao nosso Arquivo Nacional. Durante esse período, consultou mais de 50 pastas com centenas de documentos diplomáticos, relatórios secretos e correspondências confidenciais trocadas entre a Embaixada Britânica no Rio de Janeiro e o Foreign Office (Ministério das Relações Exteriores britânico), em Londres, sobre a atuação do IRD no Brasil, no tocante à propaganda anticomunista no período de 1948 ao início da década de 1970.
Tudo indica que até agora, não havia sido publicado, no Brasil, livro que mostrasse detalhes sobre as atividades do IRD no País. Geraldo Cantarino é autor, portanto, de um trabalho inédito, que mostra como o IRD operou, secretamente, no Brasil, por mais de duas décadas.
Com Segredos da propaganda anticomunista, Geraldo não tem a pretensão de ser historiador. Seu livro é o que se poderia chamar de livro-documento (ou será livro-documentário?) que poucos jornalistas experimentam. Ele espera (e eu torço por isso) que seu livro venha a contribuir para a compreensão de um momento específico da História e sirva de ponto de partida para análises e pesquisas futuras.
Tomara que Segredos da propaganda anticomunista seja lido por estudantes de jornalismo, para que aprendam um pouco mais sobre esse gênero jornalístico e sobre alguns pormenores das “batalhas” travadas durante a Guerra Fria.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Minha experiência na Antártica





Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 1982. O navio oceanográfico brasileiro Barão de Teffé partiu do Arsenal da Marinha rumo à Antártica. No cais, uma multidão se despedia da tripulação e dos cientistas que estavam a bordo. Beijos, abraços, lágrimas de mulheres, mães, filhos, e promessas de namorados para um final feliz após o retorno. Dentre toda aquela gente estávamos nós, da então TV Educativa do Rio de Janeiro. Eu, a repórter, entrevistei algumas pessoas e descrevi o navio que havia sido adquirido da Dinamarca e incorporado à Marinha Brasileira naquele mesmo ano de 1982. Jornalistas dos principais jornais, rádios e emissoras de TV também estavam lá para registrar o início da Operação Antártica I. Dentro do Barão de Teffé estava Hermano Henning, na época, repórter da TV Globo. Bom repórter, por sinal. Ele e sua equipe iriam documentar as atividades brasileiras na região. Em função da importância daquele momento, lá estava também o então Ministro da Marinha, Maximiano Eduardo da Silva Fonseca. Fiz com ele uma longa entrevista. Quando nossa câmera e microfone foram desligados, aproveitei para reclamar: por que a TV Educativa também não estava lá dentro para acompanhar aquela viagem? Afinal, éramos uma emissora pública. O ministro respondeu, com certa ironia, que não havia lugar a bordo para mais de uma equipe e que ele mesmo gostaria de estar lá também. Prossegui com a minha crítica argumentando que, nesse caso, a TV Educativa deveria ser a emissora a registrar aquela operação e não uma emissora comercial. Usei todos os argumentos possíveis para defender meu ponto de vista em defesa da televisão pública. O navio partiu, o ministro foi embora, nós fomos para emissora fazer a matéria e tempos depois, Hermano Henning trouxe de volta uma reportagem muito boa. Meu problema não era com o Hermano Henning, nem com a TV Globo, mas com o governo brasileiro que privilegiava uma emissora comercial em detrimento da televisão pública, mantida com recursos públicos. Morreram ali minhas esperanças de um dia chegar à Antártica.
Na Operação Antártica II, o então diretor de jornalismo da TVE, Hamilton Alcântara, me chamou dizendo que a emissora havia sido convidada para cobrir a participação brasileira na Antártica e que eu havia sido designada para aquele trabalho. Infelizmente, na época, razões particulares não me permitiram ir. Assim, para lá foi a minha colega, amiga e comadre, Irene Cristina, que fez um belo documentário, apesar de uma série de dificuldades que encontrou por falta de organização dos responsáveis pela operação em terra. Pois bem, tirei de vez da minha cabeça a ideia de um dia conhecer a Antártica.
Mas lá estava eu em fevereiro de 1985, junto com o cinegrafista Toni Laport, registrando para a TV Educativa o trabalho de pesquisadores brasileiros na Estação Comandante Ferraz, que fica na Ilha Rei George, no abrigo "Engenheiro Wiltgen", situado na Ilha Elefante e no navio oceanográfico Barão de Teffé. Na verdade, eu fui cobrir o que eles chamavam (não sei se ainda chamam) de terceira pernada, ou seja, a etapa final daquela terceira operação.
Embarcamos, no Rio, num Hércules C-130 da FAB que dava apoio ao Programa Antártico Brasileiro, levando e trazendo cientistas e equipamentos para o navio Barão de Teffé e para a Estação Comandante Ferraz. Embora fosse um avião de carga, o Hércules cumpriu muito bem sua missão de transportar gente. Não houve quem não gostasse da experiência. Malas, contêineres, bolsas, sacolas, dragas, caixas com equipamentos dos cientistas, tudo estava num só compartimento, junto com os passageiros e tripulantes. Saímos do Rio no dia 21 de fevereiro. Pernoitamos em Pelotas e, de lá, seguimos para Punta Arenas, no Chile. No dia 23, às 7 horas da manhã, decolamos para a Antártica. Ficamos sabendo que a temperatura era de um grau negativo, com sensibilidade térmica de menos 10 graus, por causa do vento com intensidade de 25 nós. Nevava, mas havia teto e visibilidade. Pelo menos, era isso que nos informavam da torre da base chilena de Marsh, usada pelos aviões brasileiros. Quando sobrevoamos a passagem de Drake, tudo indicava que o pouso poderia ser realizado. Mas, a certa altura, o comandante do avião foi informado de que havia muita neve na pista e que a camada de gelo teria de ser removida. Assim, ficamos sobrevoando a área durante mais de meia hora. Depois da limpeza da pista, recebemos ordens para pousar. Cruzada a névoa intensa, voamos num céu azul, daqueles de brigadeiro. Lá embaixo, a ilha Rei George nos aguardava. Ela fica a leste da península Keller, na baía do Almirantado. É a ilha mais extensa do arquipélago das Shetlands do Sul. Tem 44 milhas de comprimento e 15 de largura. Ali, o Brasil construiu sua estação, próximo a um refúgio inglês, instalado em 1947 e visitado, pela última vez, pelos ingleses em 1983. Toni e eu acompanhamos tudo da cabine de comando do avião. Ele, naturalmente, não parava de gravar. Eu, sentada sobre uma espécie de maca, situada no alto, logo na entrada da cabine, tinha uma visão perfeita. Quanto mais nos aproximávamos, mais nos impressionavam as primeiras colinas de gelo. Sem sombra de dúvida, o pouso no continente antártico foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida de repórter.
Em Marsh, a missão do Hércules estava cumprida. Fiz algumas entrevistas e, como todos ali, quando Tony e eu vimos o primeiro pinguim, corremos para registrá-lo com nossa câmera. As fitas que gravamos foram levadas para a TV-E, no Rio, pela tripulação do avião. Nosso voo e nosso pinguim seriam vistos no Brasil no dia 26 de fevereiro.
Da base chilena, fomos a Comandante Ferraz de helicóptero. Viver em Comandante Ferraz, ou em outras estações na Antártica, é viver em situação de quase confinamento. Isolados do mundo, sem notícias do Brasil, com dias da semana que não se diferenciam uns dos outros, os pesquisadores desenvolvem hábitos de convivência, talvez nunca imaginados, como os de dividir as tarefas domésticas. Ajudam a arrumar a casa, formada por um conjunto de contêineres; lavam louça, descascam verduras e legumes e ajudam a preparar carnes e frangos. Volta e meia, à tardinha, depois de um dia de trabalho, formava-se uma roda de samba improvisada, com violão, cavaquinho e maracá.
Do lado de fora, montanhas de vários tons de azul e branco nos impressionavam. São as cores do gelo antártico. Dentro d’água, grandes blocos de gelo flutuam para onde as correntes e os ventos os levam até derreterem em águas mais quentes, sabe-se lá onde. Na Antártica manda a lei da natureza e, por isso, tive a impressão de que o homem aceita mais facilmente a ideia de que Deus existe. É por isso também que em Ferraz e no próprio navio Barão de Teffé, as missas do capelão eram muito frequentadas. Por intermédio delas, fomos lembrados que era tempo de quaresma. Na Antártica, perdemos a noção de calendário.
Deixamos Comandante Ferraz e, já embarcados no Barão de Teffé (éramos cinco mulheres e 120 homens), prosseguimos viagem percorrendo as ilhas do arquipélago das Sheatlands do Sul, como Gibbs, Aspland, Eadie e Elefante. Na ilha Elefante são raros os dias de sol, mesmo no verão. Lá, encontramos o chamado pinguim antártico e o pingüim papua, que tem bico laranja. Nas pinguineiras dessa ilha, os filhotes estavam começando a perder suas penas. Era prenúncio de inverno. Logo, eles estariam emigrando. Um dado curioso é que os pinguins são muito fedorentos. Acho que é por causa da gordura que eles têm, sei lá. Só sei que uma das pinguineiras que visitei, com milhares de pinguins, chama-se Stinker Point.
Impressionante foi ver a ilha de Decepción, com seu vulcão ainda em atividade. Ela também faz parte das Shetlands do Sul. Num dos pontos de sua enseada, ocorrem as chamadas fumarolas. Lá, a temperatura da água chega a atingir mais de 80 graus. São gazes do interior superaquecido da crosta, formando contínuos vapores em contato com o meio exterior.
Na Antártica, o Barão de Teffé teve de enfrentar a fúria do mar, com ventos de 40 nós, ou seja, 74,6 km. Vagalhões moderados se formavam e as cristas das ondas com 4 metros se quebravam em borrifos. A espuma espalhava-se em faixas bem definidas na mesma direção dos ventos. Nessas condições, recomenda-se buscar abrigo.
Na Antártica eu vivi a experiência de conhecer um mundo sem fronteiras. Perto da base brasileira, ficavam as do Chile, da Polônia, da então Alemanha Oriental e da antiga União Soviética. Visitamos todas. Em cada uma, as portas sempre estavam abertas aos vizinhos, fosse qual fosse a coloração ideológica de seus governos (na época, o mundo ainda era dividido em dois blocos: o socialista e o capitalista). Em Artowsky, a base polonesa, ornitólogos brasileiros realizavam com seus colegas poloneses, o anilhamento de aves para observar suas rotas migratórias. Na entrada da base, as bandeiras polonesa e brasileira simbolizavam a cooperação entre os dois países. Terminado o trabalho dos brasileiros, chegou a hora da despedida. Os abraços calorosos revelavam a amizade que uniu aquela gente de mundos tão diferentes. Vi homens de quase dois metros de altura com lágrimas nos olhos no momento de dizer adeus aos brasileiros. Naquela mesma base, assisti a um concerto de música clássica em vídeo. Antes, fomos convidados a jantar. Como se tratava de um momento solene, os poloneses vestiam terno e gravata. Houve aplausos depois da exibição do concerto. Nós também aplaudimos, é claro. Talvez eles fizessem isso para lembrar que é preciso manter o ritual.
Na então base soviética, o comandante exibia em seu escritório um retrato de Pelé. Batemos um longo papo e, durante a conversa, ele nos ofereceu biscoitos soviéticos regados a guaraná do Brasil. O mesmo ocorreu na estação da então Alemanha Oriental, que era um braço da base soviética e na qual trabalhavam apenas seis pesquisadores. Eram biólogos e ecologistas.
Na Antártica, que eu conheci, era assim: nenhuma porta era trancada, mesmo quando uma equipe regressava ao seu país. Nenhum alimento era levado de volta na bagagem. Não sei se é apenas um costume ou regra estabelecida, mas a razão é simples: suponha que alguém se perca em seu caminho e precise de abrigo e comida. Uma base fechada, mas não trancada, pode ser o refúgio desse alguém.
No navio Barão de Teffé, vivenciei coisas interessantes. Os civis, inclusive nós, tinham de participar das chamadas paradas. De parada, não tinham nada. Eram as reuniões matinais que se realizavam bem cedo e nas quais os superiores passavam para os seus subordinados a rotina do dia.
Não me lembro bem com que frequência eram exibidos filmes. Um dia eu pedi ao imediato que programasse o filme Flashdance que já tinha sido exibido, mas antes da nossa chegada. O imediato disse que não seria possível porque para aquele dia estava programado um outro e que o Flash dance já fora visto pela tripulação. (Um parênteses: os pesquisadores que estavam no Barão de Teffé também participavam da terceira pernada. Quando eles embarcaram, os que os antecederam desembarcaram). Na verdade, foram as cinco mulheres que pleitearam a mudança do programa. Tínhamos o aval dos pesquisadores e de alguns oficiais. Mas o imediato não nos atendeu. Coisas de militares da época.
Quando fui fazer uma matéria na ilha Elefante, o comandante do navio não queria que eu fosse. Ele tinha medo de eu ter de ficar por lá, caso o tempo ficasse ruim. Como lá tinha um abrigo, eu disse a ele que estaria protegida. O argumento dele para eu não ir foi o seguinte: eu era uma mulher casada e não ficaria bem se eu tivesse de ficar num abrigo com meia dúzia de homens. Eu disse a ele que estava lá para trabalhar e não para fazer turismo. Fui para a ilha Elefante, não houve mudança de tempo e voltei para o navio ao anoitecer.
Trinta dias depois todos voltaram para casa. Naquela ocasião, os brasileiros ainda não passavam o inverno na base brasileira. Fomos à base chilena, dessa vez de barco, para lá embarcar num outro Hércules que nos levaria de volta ao Brasil. Quando lá chegamos, ficamos sabendo que o Hércules chegaria com atraso e que teríamos de pernoitar na base chilena. Foi uma sensação terrível. Estávamos no “fim do mundo” sem condições de voltar. No dia seguinte, quando fomos informados da chegada do avião, foi aquela alegria. Tony e eu preparamos o equipamento para gravar o pouso do avião. Assim que o avistamos fomos tomados de uma emoção indescritível; os olhos de alguns, inclusive os meus, se encheram de lágrimas e minha voz ficou embargada. Refeita da emoção, embarcamos. Dessa viagem resultou a reportagem Brasileiros no mundo branco exibida pela rede da TVE e pela TV Cultura de São Paulo.
Bem que eu gostaria de voltar à Antártica para poder comparar o ontem com o hoje. Quem sabe, um dia isso acontece.

sábado, 15 de maio de 2010

E por falar em ciência...no rádio!

Faz pouco tempo, ouvi na Rádio MEC um debate sobre rádio, do qual participou a radialista Taís Ladeira, da Empresa Brasil de Comunicação, responsável pelas rádios e tvs públicas brasileiras. Ela sabe muito, é uma radioapaixonada. Tenho orgulho de tê-la tido na equipe do projeto E por falar em ciência, que eu mencionei em artigo anterior, Ciência, rádio e TV. Ouvindo-a falar com a desenvoltura que lhe é peculiar, com clareza e objetividade sobre o tema que ela domina como poucos, senti vontade de falar novamente daquele projeto, resultado de um convênio assinado entre a Universidade Federal Fluminense e a Rádio MEC, que colocava o programa no ar. A produção, como eu já informei no artigo mencionado, era de alunos das turmas de Jornalismo Científico e de Radiojornalismo, matérias que eu lecionei, durante vários anos, no Departamento de Comunicação do IACS, da UFF .
No início, alguns alunos ficaram preocupados com uma nova realidade: a de produzir “pra valer”, um programa com informações científicas. Escrever, portanto, sobre ciência e tecnologia assustava um pouco. Mas, elaborar uma matéria científica não é muito diferente da produção de uma matéria política ou econômica. A jornalista Lacy Barca, responsável pela gestão do conhecimento da TV Brasil, lembrou certa vez que, do ponto de vista ético, exige-se do jornalista os mesmos cuidados de correção, fidelidade, imparcialidade. Pode-se escrever, radiodifundir, televisionar ou filmar qualquer informação científica em sua forma mais comum, com a mesma técnica usada para todas as notícias.
Com o passar do tempo, os alunos perceberam que além de informar sobre o que acontece no mundo da ciência e da tecnologia, o programa estava contribuindo para despertar vocações, estimulando a curiosidade de jovens, levando a eles algum conhecimento que pudesse contribuir para sua formação. Os alunos também se deram conta que, com seu trabalho, estavam ajudando a desmistificar a ciência e a figura do cientista, que muitas vezes tem sido sacralizada. Nesse aspecto, não encontraram muitas dificuldades, pois a imprensa escrita, havia anos, estava destinando espaço para a divulgação da ciência e tecnologia. Assim, muitos cientistas, antes um tanto avessos à divulgação de suas pesquisas, e desconfiados do trabalho profissional da imprensa, hoje veem nos jornalistas aliados na prestação de contas à sociedade.
A locução, a edição e a sonorização das matérias eram feitas no estúdio da Rádio MEC. O maior desafio foi elaborar um formato que garantisse, ao mesmo tempo, a comunicabilidade do programa, a clareza e a precisão das informações e o interesse e mobilização do público ouvinte. Como se tratava de um projeto acadêmico, veiculado em emissora oficial, sem qualquer compromisso comercial, foi possível experimentar novos formatos. Mas, sempre a partir de critérios previamente discutidos, muitas vezes com os próprios cientistas. Um exemplo foi o programa sobre Estudos do caos, do qual participou o professor Ildeu de Castro Moreira, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e militante em defesa da popularização da ciência e da divulgação científica. Para viabilizarmos o programa, fizemos três reuniões com o professor, discutimos o roteiro, a abordagem e a própria trilha sonora.
Palavra e recursos sonoros são elementos que se complementam no rádio, e é neles que reside a força do veículo. Por não oferecer detalhes minuciosos, como a televisão, o rádio estimula o imaginário do ouvinte, levando-o a criar imagens por meio das descrições e dos relatos que ouve. Isso vale também para programas que divulgam ciência, independentemente de seu formato. No caso da série E por falar em ciência, um exemplo é o próprio programa Estudos do caos, em que era preciso levar o ouvinte a relacionar o caos e sistemas caóticos a algo que lhe fosse familiar. Assim, o professor Ildeu foi buscar na natureza uma explicação para comportamentos caóticos.
(...) talvez o exemplo mais claro do sistema caótico seja um rio turbulento. Se a gente joga, por exemplo, duas folhinhas num certo lugar desse rio, elas se separam de maneira muito rápida no tempo. Uma delas pode ficar presa no redemoinho, e a outra pode descer para o mar.Então esse é um exemplo de um sistema que tem esse tipo de comportamento. Um outro exemplo é a previsão do tempo: a atmosfera se comporta de maneira muito complicda. Por isso, é muito difícil prever se vai chover ou fazer sol no fim de semana. Qualquer pequena variação pode mudar o tempo significativamente depois de uma semana. Então, esses são dois exemplos de comportamento caótico na natureza.
Não contando com a imagem de um rio específico, cada ouvinte “viu”, ao ouvir a explicação do professor, um rio que lhe era familiar, e cada um, certamente, desenhou em sua mente um sol e uma chuva particulares.
Também ao explicar o que vem a ser o controle do caos, Ildeu levou ao ouvinte uma imagem por meio de sua descrição.
(...) seria, mais ou menos, como você equilibrar uma vara na ponta do dedo. Quer dizer, é muito difícil, porque é um sistema instável.Se você fica com o dedo parado, a vara cai, mas, se você mexe com o dedo adequadamente, você pode estabilizar a vara e fazer com que ela fique se comportando da maneira como você quer. Então, existe essa possibilidade interessante de se fazer o controle de sistemas caóticos.
Um exemplo bem concreto: o coração. O coração é um sistema que até pouco tempo, se imaginava que saudável era aquele que funcionava sempre com o mesmo ritmo, invariavelmente. Agora, nos últimos anos, as pessoas têm descoberto, a partir de estudo dessa ideia do caos, que um coração saudável tem também capacidade adaptativa, quer dize,r ele muda de ritmo de acordo com as emoções, com o clima, com a temperatura.Então, o coração saudável tem de ter a capacidade adaptativa. Ele tem de reagir a pequenas variações, a pequenos estímulos. E os sistemas caóticos são exatamente isso: são sistemas que dão uma grande resposta sob ação de um pequeno estímulo. Daí a ideia de biólogos e médicos aproveitarem isso no estudo do coração, por exemplo.
A limitação tecnológica exige que a mensagem radiofônica receba um tratamento que a torne inteligível. Para alcançar esse objetivo é preciso, pois, que se estabeleça uma relação de cumplicidade entre entrevistador e entrevistado. E isso vale também, ou, sobretudo, para programas de divulgação de ciência.
Não foi possível avaliar a audiência de nosso programa. A razão é simples: E por falar em ciência era transmitido pela Rádio MEC, mas não tinha uma produção na emissora. Isso inviabilizava um contato mais íntimo entre o ouvinte e os integrantes da equipe. Vez por outra tínhamos notícia de que alguém havia telefonado querendo falar com os responsáveis do programa. Além disso, o programa era gravado, o que impossibilitava a interatividade que propicia exatamente a participação dos ouvintes.
Quando, eventualmente, levávamos ao ar um tema sobre ciência e tecnologia na série Diálogos, que era ao vivo, mediado pelo professor Luiz Alberto Sanz e por mim, podíamos medir o interesse dos ouvintes pelos assuntos tratados em função das perguntas e dos comentários que chegavam pelo telefone. Isso mostra a importância da interatividade no rádio. É nesse momento que entrevistados e ouvintes estabelecem um diálogo. O rádio ao vivo deve ser o objetivo de todos aqueles que pretendem se dedicar à comunicação radiofônica, aproximando o ouvinte de seus interlocutores, transformando-os de objetos da comunicação em sujeitos.
O programa E por falar em ciência foi uma experiência muito importante. Primeiro, porque a universidade é o lugar da reflexão, da análise, da experimentação, da pesquisa. É nela que se forma a massa crítica, e não apenas técnicos especializados em redação jornalística, em tecnologias e equipamentos, ou meros anotadores de declarações e opiniões alheias. Em segundo lugar, porque, participando do projeto, muitos alunos se deram conta de que jornalismo científico não é uma atividade burocrática. Verificaram que, apesar do mercado de trabalho fechado nas editorias de ciência dos grandes jornais, aqueles que experimentaram o jornalismo científico na universidade podem perfeitamente atuar em assessorias de instituições científicas e de pesquisa, funcionando como repórteres, editores, redatores.

Perdendo a sintonia
E por falar em ciência começou com 10 minutos de duração. Pouco tempo depois, a direção da Rádio MEC propôs que fosse ampliado para 15 minutos. Par os alunos, tratava-se de um compromisso ao qual não podiam faltar. Mesmo nas férias, os bolsistas produziam um programa semanal. Falávamos com orgulho do nosso projeto
Mas, como fim das bolsas, começaram os problemas. Não contávamos mais com equipe fixa. Como não havia remuneração, os alunos não encarvam o projeto com seriedade. Talvez achassem que estavam participando de uma atividade do tipo "brincando de fazer rádio". Normalmente, a responsabilidademaior era assumida pelo monitor da cadeira de radiojornalismo, e foi graças aos monitores que conseguimos "levar o barco adiante". Mas, durante o período de férias, os alunos não se mostraram interessados em produzir programas. Recorremos, portanto, a reprises.
Chamo a atenção para esse fato poir ele ilustra como a produtividade está intimamente ligada à remuneração. Ou seja, a bolsa confere caráter profissional ao projeto. Responsablidade, compromisso com os ouvintes e a emissora que nos abriu espaço foram secundarizados. O projeto passou a ser visto pelos alunos como outra matéria qualquer, em que a nota por um trabalho de casa é suficiente. Eis aí uma questão sobre a qual professores e alunos devem refletir.